Ofício de tia
Crônica de Lorena Serrão
Estudante do 7º período do curso de Jornalismo da Faculdade Martha Falcão
Publicado em 05 de junho de 2020
Foto: Arquivo Pessoal
Os fins de tarde são agradáveis em qualquer lugar do Brasil, seja em Porto de Galinhas, onde somos contemplados com nuvens rosadas, ou em São Paulo, quando as estações são de baixas temperaturas e sentimos aquela garoa leve. Aqui no Amazonas, costuma-se dizer que “o sol esfria”. É quando ele está se pondo. Para mim, essa é hora de pegar o pequeno João Gabriel, de 2 anos, na creche.
Pronta para ir, vou descendo devagar as ruas do Xingu, sempre ao lado da área verde, observando o vento dançar com os galhos das árvores e o cantar dos pássaros que chega a ser irritante. Na maioria das vezes não encontro ninguém na frente das casas. Essa geração não brinca mais na rua e agora se esconde por trás de portões eletrônicos e cerca elétrica, juntamente com vizinhos que mal dizem um bom dia ou boa tarde.
Já pensou se não tivesse um sabiá nessa flora? Seria um silêncio gritante. Todavia, é o suficiente para eu acalmar meus pensamentos e receber um pouco de vitamina D. Na saída, o ambiente muda: o calor aumenta, carros em alta velocidade e o odor de poluição mostra que eu já estou na Avenida Brasil, que tem dois sentidos opostos e é cortada por um igarapé completamente contaminado pela cidade grande.
Acelero os passos para atravessar na faixa de pedestre, e quando chego ao outro lado, a movimentação continua. Entretanto, o aglomerado de pessoas e veículos têm o mesmo objetivo que eu: pegar as crianças que estão ali desde sete da manhã. Uma verdadeira confusão de carros parando no meio da rua, estacionando em frente a garagem das casas. Seria um prato cheio para o órgão fiscalizador de trânsito.
A creche é um lugar colorido até demais, enfeitado com emborrachados brilhosos e personagens famosos do universo infantil pintados na parede, como o Olaf de Frozen. Parece que mergulho em mundo paralelo que cheira a colônia de alfazema e é projetado para pessoas com até um metro de altura. Os que medem mais que isso e trabalham por lá aparentam ter um jeito meio estranho. São felizes demais! Não é possível que, fora dali, consigam manter sempre aquele sorriso de orelha a orelha.
Talvez seja um belo teatro, primeiramente porque não é fácil ser professora e dar conta de uma sala com em média 15 crianças. Pode até ser bonitinho no início, mas quando uma ou duas começam a chorar, aí o bicho pega. Isso porque não estou levando em consideração a hora das refeições! Deve ser comida por todo lado, e a mão toda lambuzada dos pequenos, que eles sempre passam no cabelo, esfregam na roupa…
Já adentrando as dependências, vejo cada turma posicionada no pátio em fileiras. Os pequenos ficam ansiosos, olhando em direção a porta segurando as mochilas, algumas chegam a ser maior do que o próprio aluno. A professora fica no início da fila, entregando cada menino ao responsável e já é de costume todo professor não conseguir decorar o nome de tanta gente assim. Somos chamados carinhosamente de “mãezinha” ou “paizinho”, mesmo não sendo. Vez ou outra fico escutando conversa, “a Mariazinha hoje chamou um palavrão na sala. Se ela faz isso é porque viu alguém fazer! Converse com ela, mãezinha”. Parece que não são só os meninos que ganham puxão de orelha, e desde que não seja comigo, me divirto com essa situação.
Olho por cima e logo vejo uma cabeça inclinada em minha direção, aqueles olhos grandes que eu reconheceria de longe e um sorriso discreto. Lá vem ele, com os passos curtos, todo sem graça. A professora Sol me dá o boletim diário das atividades e os avisos da próxima semana. Logo em seguida, vou fazendo as perguntas clichês, “como foi a aula hoje?”, “almoçou o quê?”, “dormiu?”, e sempre tenho quase as mesmas respostas.
A pausa na padaria é quase obrigatória para comer o pão de queijo que o Gabriel tanto gostava. Curiosamente, ele come sem tomar um gole de café ou achocolatado, não sei como não engasga, mas eu fico atenta. As atendentes de longe já nos reconhecem, sabendo exatamente o que íamos pedir. Isso, aliado ao carisma do menino, tornavam nosso atendimento vip. Os funcionários já têm uma certa intimidade e é tudo o que o meu sobrinho gosta, pelo fato de ser um menino cativante. Resultado: ainda ganha chocolates de graça. Na hora de ir, não há outra alternativa, carrego o João no colo para atravessar a avenida principal, momento em que a aflição é grande. Apesar de sempre tomar os cuidados, o peso da responsabilidade de além de ser uma criança que amo tanto, filho de outros também. Apesar de ser o mais baixo da sua turma, Gabriel é gordinho, o que me faz ficar um pouco atrapalhada segurando a mochila e o pequeno nos braços.
Entrando no conjunto, a paz se renova. Vamos bem próximo às árvores e a histórias vão surgindo, o menino lembra de contos que ouviu na escola ou até mesmo algum que eu lhe contei, fábulas que envolvem grandes florestas. A diferença é que nós somos os personagens e a diversão é garantida. Já que há pouquíssimo movimento de pessoas nas ruas e quase nada de carros circulando, a gente pode brincar à vontade.
Esses momentos são uma verdadeira terapia, pois apesar da brincadeira, João também me pergunta muitas coisas que faço questão de responder, curiosidade de criança mesmo, como por exemplo: “por que não existe mais dinossauro, tia?”. Em alguns instantes, paro e olho nos olhos dele, e penso como o tempo é traiçoeiro, podendo apagar essas horas de nossas memórias. Bate aquela tola insegurança de que daqui a pouco ele já vai crescer e terá outras paixões que não eu. Entretanto, me esforço para que ele sempre encontre em mim, além de uma tia, uma verdadeira amiga. Lembro que a nossa convivência era tão intensa que vez ou outra ele me chamava de mãe, porém, quando isso acontecia, me causava um certo terror.
Há quem diga que é uma judiação eu fazer a criança andar aquilo tudo, mas sei que ele gosta e já se acostumou. Tudo bem que certa vez o Gabriel não quis ir andando de jeito nenhum e insistiu para ir no colo, mas minhas costas e meus braços reclamaram tanto que tive de parar um pouco e me sentar na calçada do vizinho para retomar as minhas forças. Enquanto vamos andando lentamente, lagartixas se assustam com a nossa presença em meio a grama da área verde, aquela mesma do canto exagerado dos pássaros. “Tia, olha o bicho!”, “Olha o passarinho com a família dele”. Essa admiração pelos bichos com certeza herdou de mim.
Já é possível avistar minha casa e ver o carro da minha irmã que chegou do trabalho para buscar o filho. Provavelmente não vai sobrar muito tempo para brincarmos um pouco. O Black, nosso cachorro, anuncia o fim do trajeto latindo. A mãe do Gabriel lhe dá um abraço apertado, saudade de quem passa a maior parte do tempo fora, mas não deixa de cumprir o seu papel. Nem solta o menino ainda e já vai me questionando sobre os acontecimentos da escolinha. É, João Gabriel! Hora de nos despedirmos, momento para uma pausa dramática. Mas tudo bem, amanhã o ritual se repete e o final de semana é todo nosso. Minha irmã não deixa de agradecer um dia sequer pelo o que eu faço, mas nem precisava, pois não trocaria por nada esses momentos que hoje sinto falta.