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Divisão nos cursos de medicina

Como os hospitais universitários refletem a desigualdade no Brasil. 

Por Vitória Lázaro e Alicia Geissler*

Especial para portalfalcon.com

Publicado em 22/10/2023


A desigualdade é um problema estrutural no Brasil, seja ela econômica ou social. Assuntos como saúde e educação são os tópicos mais discutidos nos planos de governança, mas entra ano, sai ano e o panorama continua o mesmo. Regiões mais afastadas dos grandes centros continuam sofrendo com escassez de recursos e de mão de obra para suprir as necessidades dos cidadãos, como é o caso da disponibilidade de médicos no país. 


O Brasil registrou em duas décadas um aumento de mais de 50% no número de profissionais de medicina, no entanto, o resultado positivo não reflete uma distribuição igualitária para todas as regiões. Segundo dados do estudo Demografia Médica realizado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), apenas o Sudeste concentra 42,03% dos médicos de todo o país, com os estados de São Paulo e Minas Gerais apresentando mais de 30% do número total. Em contrapartida, a região Norte reúne ínfimos 8,89% sendo a com menor percentual e até mesmo dentro da própria região há desigualdade. A maioria dos estados possui menos de 1% dos médicos do país, somente Pará e Amazonas ultrapassam essa marca com 4,11% e 2%, respectivamente. 

Segundo análise feita pela reportagem utilizando dados do CFM e do Ministério da Educação (MEC), a má distribuição de profissionais está intimamente relacionada à quantidade de hospitais universitários em funcionamento nos estados. São Paulo e Minas Gerais lideram o ranking com 13 e 06 hospitais, respectivamente. Enquanto isso, metade dos estados da região Norte não possui nenhum como Roraima, Rondônia e Acre que formam o grupo daqueles com menos de 1% dos médicos do país. O Pará lidera na região com quatro hospitais, seguido pelo Amazonas com dois e Amapá e Tocantins com apenas um cada. 


CALVÁRIO RUMO AO JALECO 


No Amazonas, existem três cursos de medicina públicos em funcionamento, dois ofertados pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e um pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), mas apenas dois hospitais-escola: o Hospital Universitário Francisca Mendes (HUFM) e o Hospital Universitário Getúlio Vargas (HUGV), referência em atendimento de média e alta complexidade. Ambos na capital e pertencentes à instituição federal.

Os estudantes da federal têm livre acesso ao hospital desde o chamado ciclo básico, quando entram em contato com as primeiras práticas médicas, por um pequeno corredor que o liga à Faculdade de Medicina fazendo com que a estrutura seja de fato uma extensão da universidade.   

Além de peça-chave na formação de novos médicos, a estrutura de um hospital universitário alivia a pressão no sistema público de saúde ao remanejar pacientes para um espaço altamente equipado e com oferta elevada de profissionais. “Os pacientes estão lá de forma eletiva. Então os leitos são muito mais organizados. A quantidade de enfermeiros para cada paciente é mais adequada. Medicamentos também tem muito mais no hospital universitário do que nos outros, justamente por ter esse controle. As cirurgias não são de urgência, são programadas. Os pacientes que internam são alocados naqueles leitos que estão vazios. Enquanto em outros locais, a gente vê que tem internação, por exemplo, em poltrona”, conta GS*, estudante do décimo período de medicina da UFAM. 


O incentivo à pesquisa, um dos três pilares da educação superior, é também beneficiado com a infraestrutura de um hospital universitário próprio, como é o caso do Hospital das Clínicas da Universidade de São Paulo (USP) e o Hospital Universitário Lauro Wanderley da Paraíba. “Tem a própria gerência do hospital pra isso, então a gente publica muito em revistas científicas, tem inclusive a nossa própria revista científica, eventos científicos. Eu acho que isso melhora o academicismo que muitos hospitais não têm. Os médicos que são professores universitários têm uma formação de boas universidades, boas residências, de boas pós-graduação, mestrado, publicações. Isso tudo soma muito pra vida acadêmica. E eles acabam trazendo isso para o hospital e cria essa cultura de pesquisar, de se aprimorar, de publicar. Então, essa é a vantagem de estar num hospital universitário que é seu”, relata Marcos Dias, também acadêmico de medicina da UFAM. 


O curso de medicina da UEA, por outro lado, atua há 22 anos sem hospital-escola e conta com o esforço individual de professores e alunos para realizar as aulas práticas essenciais ao curso. Em fevereiro de 2019, ainda em seu primeiro mandato, o governador do estado Wilson Lima anunciou uma parceria do Governo do Estado com a USP para a implantação do Hospital Universitário da UEA na estrutura onde hoje funciona o Hospital Delphina Aziz. As obras, porém, nunca foram iniciadas e apenas em abril de 2023, já no segundo mandato do governador, foi divulgada a construção de um ambulatório modelo para a universidade. Até junho apenas a demolição do prédio antigo havia sido realizada. 

“Ah não, você tem que dar prioridade pra isso daqui.” Foi isso que BL*, estudante de medicina da UEA, ouviu da professora depois de atravessar a cidade para chegar na universidade, localizada na zona sul da cidade, após uma aula prática em um hospital na Zona Norte. “Tinham algumas aulas que eram no (Hospital) Francisca Mendes às duas horas da tarde, a gente tinha que estar lá e quatro aqui (na universidade). E teoricamente a aula acaba quatro lá. Fica sempre aquela coisa, a gente vai perder de onde? A gente vai perder lá a aula pra poder chegar aqui no horário ou perder aqui. E sempre de um dos lados acaba reclamando”, afirma a acadêmica. 

Lages também explica a dinâmica complexa de aulas práticas, onde as turmas com uma média de sessenta alunos se subdividiam em grupos diminutos para acompanhar os professores nos hospitais onde trabalhavam. “Eram 05 ou 06 professores. Tinha em torno de uns 10 por subturma, ou seja, por professor. A gente dividia em grupo A e B. No fim eram doze subturmas. A gente acaba tendo menos práticas. Às vezes deixava de ter por que só pode grupos pequenos. Então tinha que ficar revezando intervalos aí de semanas para um grupo depois de outro”, recorda. 


A estudante do nono período ainda afirma que não se sente segura para exercer a profissão diante de todas essas deficiências no ensino e espera poder compensar durante o internato, momento em que o acadêmico vai à campo e coloca em prática todos os conhecimentos adquiridos durante o curso. “A gente vai avançando os períodos e vai vendo como faz falta. Não me sinto nem um pouco preparada. Eu acho que nem 90%, mas assim, a expectativa é chegar lá. Estou tentando ser o mais confiante possível para que consiga tentar salvar um pouco de tudo que eu aprendi”, reitera. 


Já Dias conta como a sua experiência no HUGV o ajudou a desenvolver uma filosofia de trabalho sólida: “É bom saber esse fluxo de trabalho já que cada hospital tem seu fluxo próprio. Mas aqui eu aprendo uma base de todos os protocolos. E aí fica mais fácil. Se eu faço um procedimento aqui e realizo o mesmo procedimento em outro estado consigo identificar as diferenças facilmente”, relata o estudante. 


Quando perguntada sobre o futuro ambulatório, Lages se mostrou esperançosa e disse ser um passo importante para os alunos da universidade estadual que ainda permanecem em clara desvantagem comparados aos da federal. “Se ele sair eu acho que tem muito professor que quer fazer por onde, ajudar, que acha que de fato as coisas podem mudar. E assim, a gente também vai sendo guiado pelo professor. Eu acho que é uma expectativa que a gente tem desde sempre aqui, então acredito que sim pode ajudar muito. Eu não sei como que são as práticas do pessoal que começou lá no HUGV, mas eles provavelmente andaram até correr. A gente teve que correr desde o início”, diz a acadêmica.


A reportagem tentou entrar em contato com a reitoria da UEA e com a direção da Escola Superior de Ciências da Saúde da universidade estadual (ESA) para obter informações sobre o acordo firmado com a USP para a construção do hospital universitário em 2019 e sobre o andamento das obras do ambulatório, mas não recebeu resposta. 


GS* e BL* são nomes fictícios. As fontes pediram para não serem identificadas. 

*A reportagem faz parte da atividade avaliativa da disciplina Jornalismo de Dados e Algoritmos, ministrada pela professora Vanessa Sena, durante o semestre de 2023-2.

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