Alvorada do Boi Garantido: conheça a tradição que há 50 anos arrasta multidões pelas ruas de Parintins

Uma das maiores festas populares da cidade, o evento também movimenta a economia local fora da temporada do Festival de Parintins


Há 50 anos, o Boi-Bumbá Garantido toma as ruas de Parintins, no interior do Amazonas, cumprindo a tradição de brincar até o amanhecer do dia 1º de maio — Dia do Trabalhador e de São José Operário, um dos padroeiros do Bumbá. Realizada desde 1975, a Alvorada é, depois do Festival de Parintins, a maior manifestação popular do Boi Garantido e, desde 2018, é reconhecida como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Amazonas, pela Assembleia Legislativa (Aleam). A festa carrega um forte simbolismo, unindo fé, cultura popular, histórias de torcedores que vêm de longe, além de preservar a memória coletiva do lado vermelho da Ilha Tupinambarana.


A Alvorada começa ainda na noite de 30 de abril e atravessa a madrugada ao som de tambores, toadas e muita emoção. Mais de 30 mil brincantes do Boi Garantido transformam as ruas em um grande rio vermelho. Nesta reportagem, conheça os detalhes dessa tradição cinquentenária e histórias de torcedores que marcaram presença em uma das festas mais importantes da cultura bovina — um evento que também movimenta o turismo e a economia local fora da temporada do Festival de Parintins.

Descendo o rio para Parintins


Chegar a Parintins já é, por si só, uma experiência. O acesso à ilha é feito apenas por via aérea ou fluvial. De avião, a viagem dura cerca de 45 minutos. De lancha, são entre 6 e 8 horas. Mas o trajeto mais popular é o de barco, que pode levar em torno de 17 horas navegando pelas águas do Rio Amazonas.


“Descer o Rio Amazonas até Parintins é uma loucura, mas uma loucura boa”, define uma torcedora anônima, de 31 anos, durante a viagem rumo à ilha. “É cansativo, mas animado. A gente vai se enturmando, mesmo quando não vai acompanhado, faz amizades, compartilha histórias, canta toadas juntos, tomamos uma gelada… A viagem vira parte da festa.”


Ela está a caminho de sua primeira Alvorada e fez questão de não perder a edição histórica de 50 anos. “No ano em que a Alvorada completa 50 anos, eu não poderia deixar de vir. Precisei dar um jeitinho no trabalho pra conseguir vir escondida, então não posso nem postar foto — por isso também não quero me identificar! (risos). Mas estou feliz e ansiosa para viver tudo isso de perto. Quando amamos um Boi-Bumbá, fazemos de tudo para vê-lo de perto”, afirma.


Ao longo dessas cinco décadas, a Alvorada do Boi Garantido se tornou, para além de uma tradição, um marco afetivo de reencontro entre o Boi do Povão e seu povo, e momento de matar a saudade da ilha — que ferve de gente no último fim de semana de junho, durante o Festival de Parintins. É a prova viva de que, em Parintins, se respira cultura o ano todo.

  

Da Cidade Garantido ao amanhecer


Na noite de 30 de abril, a festa começa no Curral Lindolfo Monteverde, na “Cidade Garantido” — sede do Bumbá, local de festas, ensaios e dos galpões de alegorias. No curral, a festa é um grande show, mesclando as toadas novas com as toadas mais antigas, tradicionais de Alvorada, com a presença de todos os itens oficiais e da galera (os torcedores). Em 2025, o Boi Garantido traz o tema “Boi do Povo, Boi do Povão”, que também nomeia o álbum de toadas 2025.


Após o show, o Boi Garantido, o trio elétrico e a Batucada seguem pelas ruas, enfeitadas com bandeiras e balões vermelhos e brancos, no tradicional trajeto da Alvorada, acompanhados pela multidão e por muitos triciclos, meio de transporte comum em Parintins. A passeata percorre as avenidas Lindolfo Monteverde, Rua da Igreja São Benedito e Avenida Amazonas, totalizando 2,5 quilômetros, até chegar à Catedral de Nossa Senhora do Carmo, a última parada. Durante o trajeto, o repertório inclui toadas antológicas que exaltam a tradição e a história do Garantido, além de satirizar o boi contrário.


Caio Rodrigo, perreché* desde que se entende por gente, no início da caminhada da Alvorada — enquanto tomava o tradicional “copão três por 10” — descreveu a emoção de viver a festa pela quinta vez:


“Quando me perguntam o que a Alvorada representa pra mim, eu nem sei explicar direito. É a festa do povo, dos perrechés. É o boi brincando nas ruas com o povão, na chuva mesmo, seguindo a Batucada, o trio, cantando as toadas até o amanhecer. Pra mim, Alvorada é celebração da cultura, da nossa identidade. Por isso o Garantido é o Boi do Povo, né? (risos). Só ele tem uma festa única assim, é motivo de orgulho. Todos, até quem torce pro Boi Caprichoso, deveriam viver essa experiência pelo menos uma vez na vida.”


*termo que designa os torcedores do Boi Garantido

 

Resgate de raízes e tradições familiares


A professora Liliane Machado, parintinense nascida na Baixa, também marcou presença na festa. Ela conta que cresceu vivenciando de perto a cultura de Parintins e ouvindo as histórias contadas por sua mãe, que lhe ensinou a paixão pelas tradições da sua terra, especialmente pelo Boi Garantido. “Escolhi ser professora de História e Geografia por influência dessa cultura tão rica e presente em minha vida”, diz ela.


“A Alvorada me lembra a minha mãe. Quando criança, a gente não ia para a festa, mas esperava o Garantido passar na rua de casa. Acordava todo mundo, duas da manhã, íamos esperar na ponta do São Benedito. O Boi passava e era uma alegria contagiante. Mesmo morando atualmente em Manaus, a Alvorada sempre foi uma expectativa, algo que me conecta com minhas raízes. Este ano retornei após anos sem vir. Hoje, vejo crianças acordando cedo, como eu fazia com minha mãe e meus tios, para esperar o boi passar. A experiência da Alvorada não é só uma passeata, ela é o resgate das nossas raízes e da cultura que nunca vai morrer, pois as novas gerações continuam a aprender a valorizar o que é nosso. Valorizar as toadas antigas, as festas, os compositores, a tradição… é um chamado. Isso é o que mantém a nossa cultura viva, passando de geração em geração.”



Além da Alvorada, o Boi Garantido guarda outras tradições de rua, como em 12 de junho, véspera de Santo Antônio; 24 de junho, dia de São João e aniversário do Bumbá; e 17 de julho, dia da “Matança” do Boi — festa simbólica que representa o fim da temporada bovina na ilha.

 

História da Alvorada


A tradição de brincar de boi-bumbá nas ruas de Parintins é muito mais antiga do que a própria Alvorada e remonta ao início do século XX, quando surgiram os bumbás na ilha. A Alvorada, como conhecemos hoje, nasceu em 1975, idealizada por Paulinho Faria, Jair Mendes, Zezinho Faria e João Batista Monteverde. O objetivo era anunciar o primeiro ensaio do Boi Garantido, que acontecia no início de maio.


Naquele primeiro ano, o grupo utilizou um Fusca com um carro de som improvisado e o Boi Garantido colocado sobre o veículo, percorrendo as ruas para divulgar o ensaio. Com o tempo, batuqueiros, fogueteiros e torcedores começaram a acompanhar o percurso. O evento foi crescendo e se transformou na grande festa que é hoje, sendo reconhecida como Patrimônio Cultural de Natureza Imaterial do Amazonas.



A data da Alvorada, na madrugada de 1º de maio, carrega vários significados para o Boi Garantido: é o dia de São José Operário, padroeiro da Baixa do São José, território do Garantido, e também o Dia do Trabalhador. Assim, 50 anos depois, a Alvorada continua a unir tradição religiosa e resistência popular, refletindo a identidade do Boi do Povão.


Texto: Ruan Jucá

Fotos: Ruan Jucá, Jordy Neves, Elcio Farias e Arquivo Paulinho Faria 

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